Uma Lenda que fazem os mais velhos baixarem os olhos de medo

Num vilarejo perdido no interior de Pernambuco, onde as estradas de terra se dissolvem em mato e o céu parece engolir as estrelas, havia uma história que ninguém ousava contar em voz alta depois do pôr do sol. A Garota da Noite. Não era uma lenda qualquer, daquelas que vovós contam para manter as crianças na linha. Era algo que fazia os mais velhos baixarem os olhos e os padres segurarem firme seus terços. Diziam que ela era uma moça, jovem, de beleza tão cruel que parecia esculpida pelo próprio demônio. Mas ninguém sabia ao certo quem ela foi em vida. Uns diziam que era uma noiva traída nos anos 50, que se matou num pacto de sangue com algo mais velho que o diabo. Outros juravam que ela nunca foi humana, apenas uma coisa que usava a pele de uma mulher para caçar. O que todos concordavam era: se você a visse, era tarde demais.
A história começa com Rafael, um cara de 28 anos, caminhoneiro, daqueles que vivem na estrada e não acreditam em nada além do asfalto e do ronco do motor. Ele tava voltando de uma entrega em Recife, atravessando uma estradinha de terra perto de Triunfo, já passava das duas da manhã. O rádio chiava, o sinal fraco, e o ar tava pesado, com aquele cheiro de terra molhada e algo azedo, como leite estragado. Rafael tava cansado, os olhos ardendo, mas precisava chegar ao próximo posto antes de parar. Foi quando ele viu, à beira da estrada, uma garota.
Ela tava de pé, sob a luz fraca de um poste meio quebrado. Vestia um vestido branco, rasgado nas bainhas, que parecia flutuar mesmo sem vento. O cabelo preto caía até a cintura, liso demais, como se fosse feito de tinta. Rafael diminuiu a velocidade, o coração acelerando, não por medo, mas porque a garota era linda. Linda de um jeito que não fazia sentido. Pele pálida, quase brilhando na escuridão, e olhos que ele não conseguia ver direito, mas que pareciam puxá-lo. Ele parou o caminhão, o motor tossindo, e baixou o vidro.
“Precisa de ajuda, moça?” perguntou, tentando soar casual, mas a voz saiu rouca.
Ela não respondeu. Só sorriu, um sorriso que parecia cortar a noite. Antes que Rafael pudesse dizer mais alguma coisa, ela estava do lado da porta do passageiro, como se tivesse deslizado pela escuridão. Ele não a viu se mover. O ar ficou gelado, e o cheiro azedo agora era insuportável, como carne podre misturada com flores murchas.
“Posso entrar?” a voz dela era doce, mas tinha algo errado, como se ecoasse dentro do crânio dele.
Rafael, ainda hipnotizado, só assentiu. Ela subiu no caminhão, o vestido roçando no banco de couro, e sentou com uma graça que não parecia natural. Ele tentou puxar conversa, perguntar de onde ela era, mas ela só olhava pra frente, o sorriso fixo. Foi aí que ele notou: os pés dela, descalços, não tocavam o chão do caminhão. Flutuavam, só um pouquinho, como se o mundo não tivesse peso pra ela.
“Você acredita em pecados, Rafael?” ela perguntou, o nome dele saindo da boca dela, como se sempre o conhecesse. Ele congelou. Nunca tinha dito o nome.
“Quê? Como você”
“Shhh,” ela cortou, o dedo longo e frio tocando os lábios dele. A pele dela era gelada, mas queimava, como gelo seco. “Todo mundo peca. Mas você… você carrega tantos.”
O caminhão começou a trepidar, mesmo parado. O rádio explodiu em estática, e uma risada baixa, gutural, parecia vir de todos os lados. Rafael tentou girar a chave, mas o motor não respondia. Ele olhou pra ela, e agora os olhos dela não eram mais escondidos pela sombra. Eram negros, completamente negros, como poços sem fundo, e dentro deles ele viu flashes de coisas que ele tentou enterrar: a briga com o pai que terminou em socos, a traição com a namorada do amigo, as noites em que bebeu até apagar e acordou com sangue nas mãos sem saber por quê.
“Você não pode fugir,” ela disse, e agora a voz não era mais doce. Era como facas arranhando metal. O rosto dela começou a mudar. A pele rachou, como porcelana quebrada, revelando algo úmido e escuro por baixo, como carne crua. O sorriso se abriu demais, mostrando dentes afiados, mais dentes do que uma boca deveria ter. Rafael gritou, tentou abrir a porta, mas ela não cedia. O ar dentro do caminhão ficou espesso, difícil de respirar, e o cheiro agora era de enxofre puro.
Ela rastejou por cima dele, o corpo leve demais, como se fosse feita de fumaça. “Você me chamou,” ela sussurrou, o rosto tão perto que ele sentiu o hálito dela, um fedor de morte e desejo misturados. “Todo mundo que passa por aqui me chama.” As mãos dela, agora com unhas longas e pretas, cravaram no peito dele, rasgando a camisa e a pele como se fossem papel. Sangue quente escorreu, mas ele não conseguia se mover, preso por aqueles olhos que agora brilhavam com um vermelho doentio.
O que veio depois, Rafael não conseguiu descrever, porque ninguém sobrevive à Garota da Noite sem perder algo. Ele acordou horas depois, jogado na beira da estrada, o caminhão a poucos metros, com as portas abertas e o interior coberto de arranhões profundos, como se um animal tivesse rasgado tudo. No peito, ele tinha marcas de unhas, fundas, que sangravam e ardiam como se ainda estivessem sendo cortadas. No espelho retrovisor, ele viu, por um segundo, o reflexo dela, sorrindo, antes de sumir.
Rafael nunca mais dirigiu à noite. Ele parou de contar a história depois que os outros caminhoneiros começaram a rir, dizendo que era só cachaça e sono. Mas nas poucas vezes que falou, ele tremia, e seus olhos ficavam vidrados, como se ainda visse aqueles olhos negros. E os moradores de Triunfo sabem: se você dirigir por aquela estrada depois da meia-noite, mantenha os olhos no asfalto. Não pare. Não olhe pra beira da estrada. Porque a Garota da Noite tá lá, esperando, com um sorriso que promete tudo e não dá nada além de dor.